Nova Lei Dispondo sobre os Poderes Investigatórios do Delegado
Olá
amigos, quero me desculpar pela ausência logo agora que comecei a despertar a
atenção de alguns leitores com alguns temas polêmicos. Mas a falta de tempo me
impõe tal situação em meio a trabalho e estudos. Para tirar a poeira por aqui
achei que veio a calhar tratar sobre esse tema ante a pertinência temática
total que este espaço procura cultivar.
Pensava
em escrever sobre a nova lei, todavia como ainda não havia começado e seria
algo bem resumido também, fui surpreendido por esse texto de qualidade do Juiz
Federal Márcio Cavalcante que foi publicado pelo site do Dizer o Direito e que
passo a compartilhar com vocês. Espero que gostem, grande abraço!
Comentários à Lei 12.830/2013,
que dispõe sobre a investigação criminal conduzida por Delegado de Polícia.
Márcio André Lopes Cavalcante
Juiz
Federal Substituto (TRF da 1ª Região).
Foi
Defensor Público, Promotor de Justiça e Procurador do Estado.
Foi recentemente publicada a Lei
n.° 12.830, de 20 de junho de
2013, que dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de
polícia.
Vamos conhecer um pouco mais
sobre esta importante inovação legislativa.
Considerando que o assunto é
extremamente polêmico, ressalto, desde já, que a presente exposição tem fins
meramente didáticos, sem o objetivo deliberado de encampar ou criticar qualquer
das diversas posições institucionais existentes.
Contexto em que foi editada a Lei
A investigação criminal tem sido
um tema bastante discutido, atualmente, por conta da tramitação da PEC 37, no
Congresso Nacional. Esta proposta de emenda constitucional acrescenta o § 10 ao
art. 144 da CF/88, prevendo que a apuração das infrações penais de que tratam
os §§ 1º e 4º deste artigo incumbem privativamente às Polícias Federal e Civil.
Há um acalorado debate
envolvendo, de um lado, os Delegados de Polícia e, de outro, os membros do
Ministério Público, conforme vocês já devem ter acompanhado pela imprensa ou
nas redes sociais.
No contexto desta discussão, foi
aprovada a Lei n.°
12.830/2013, que não retira a possibilidade de investigação de crimes por parte
do Ministério Público (até porque se o fizesse, por meio de lei, seria
inconstitucional), mas tinha como objetivo firmar a tese de que a decisão final
das diligências a serem realizadas no inquérito policial seria do Delegado de
Polícia.
Objetivos da Lei n.°
12.830/2013
Examinando o texto da Lei,
parece-me que as entidades de classe dos Delegados de Polícia (que lutaram pelo
projeto) tinham dois objetivos principais com a sua aprovação:
1) Obter o reconhecimento de que
as funções exercidas pelo Delegado de Polícia são de natureza jurídica,
essenciais e exclusivas de Estado, devendo, portanto, a classe ser equiparada,
para todos os efeitos, com as demais carreiras de Estado (Magistratura,
Ministério Público, Defensoria Pública etc.).
2) Fazer constar, no texto legal,
a tese institucional de muitos membros da classe de que a decisão final sobre a
realização ou não das diligências no inquérito policial pertence ao Delegado de
Polícia.
Conforme será demonstrado à
frente, o primeiro objetivo foi conseguido. Quanto ao segundo, no entanto, não
se obteve êxito, considerando que o dispositivo que poderia sinalizar no
sentido desta conclusão foi vetado pela Presidente da República.
Vejamos cada um dos artigos da
nova Lei:
Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo
delegado de polícia.
Segundo o entendimento
majoritário da doutrina e da jurisprudência, a investigação de crimes não é uma
atividade exclusiva das Polícias Civil e Federal.
A investigação criminal pode ser
realizada por meio de outros órgãos, como por exemplo: Comissões Parlamentares
de Inquérito, Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), Banco
Central, Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), IBAMA, Ministério
Público.
A investigação criminal promovida
pela Polícia é feita por meio do inquérito policial (ou TCO), que tramita sob a
presidência do Delegado de Polícia.
Vale ressaltar, para que não
fique nenhuma dúvida, que o art. 1º não está afirmando que a investigação
criminal somente pode ser realizada pelo Delegado de Polícia. De forma
alguma. O que diz este artigo é que a presente Lei regula a investigação feita
pelo Delegado (inquérito policial ou TCO).
Art. 2º As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações
penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais
e exclusivas de Estado.
Natureza jurídica
Consiste
em uma importante conquista para a classe de Delegados de Polícia. Havia alguns
entendimentos no sentido de que as funções desempenhadas pelo Delegado não
poderiam ser classificadas como jurídicas, considerando que seriam atividades
materiais de segurança pública, conforme previsão do art. 144 da CF/88.
Tratava-se, contudo, de conclusão
muito estreita, tendo em vista que o cargo de Delegado de Polícia é privativo
de bacharel em Direito e muitas das funções por ele desempenhadas são
atividades de aplicação concreta das normas jurídicas aos fatos apresentados,
como é o caso do indiciamento, da representação por medidas cautelares e da
elaboração do relatório.
Essenciais e exclusivas
A atividade policial é essencial
em um Estado de Direito, sendo também exclusiva do Poder Público, considerando
que, mesmo em sistemas liberais com modelos de Estado mínimo, não se chegou ao
ponto de conceber a possibilidade de transferência das funções policiais para a
iniciativa privada.
O art. 2º da Lei veda a investigação de crimes por parte de
particulares, como no caso da “investigação criminal defensiva”?
Não. Quando o art. 2º utiliza a
palavra “exclusivas”, ele não está afirmando que a apuração de infrações
penais, por qualquer meio, é uma atribuição apenas do Estado. O que se
preconiza é que a função de apuração de infrações penais exercida por meio do
aparato estatal e conduzida por Delegado de Polícia não pode ser transferida à
iniciativa privada. Em suma, veda-se a “terceirização” ou “privatização” da
atividade investigativa estatal.
Não se pode concluir, ao extremo,
que somente o Poder Público possa apurar crimes. A imprensa, os órgãos sindicais,
a OAB, as organizações não governamentais e até mesmo a defesa do investigado também
podem investigar infrações penais. Qualquer pessoa (física ou jurídica) pode
investigar delitos, até mesmo porque a segurança pública é “responsabilidade de
todos” (art. 144, caput, da CF/88).
Obviamente que a investigação
realizada por particulares não goza dos atributos inerentes aos atos estatais,
como a imperatividade, nem da mesma força probante, devendo ser analisada com
extremo critério, não sendo suficiente, por si só, para a edição de um decreto
condenatório (art. 155 do CPP). Contudo, isso não permite concluir que tais
elementos colhidos em uma investigação particular sejam ilícitos ou ilegítimos,
salvo se violarem a lei ou a Constituição.
Registre-se que o projeto do novo
Código de Processo Penal (Projeto de Lei n.°
156/2009) prevê, expressamente, o instituto da “investigação criminal
defensiva” que, mesmo sem estar ainda regulamentado, é plenamente possível
pelas razões acima expostas, bem como por ser um corolário da garantia
constitucional da ampla defesa.
Qual é a abrangência da expressão “polícia judiciária”?
As Polícias Civil e Federal
exercem duas funções principais:
a) Investigar infrações penais,
coletando provas sobre autoria e materialidade;
b) Auxiliar o Poder Judiciário,
cumprindo ordens judiciais, como o mandado de prisão, a busca e apreensão, a
condução coercitiva, entre outros.
Para uma primeira corrente da
doutrina, a expressão “polícia judiciária” abrange as Polícias Civil e Federal
no exercício da investigação de infrações penais ou no auxílio do Poder
Judiciário. Em suma, polícia judiciária é a Polícia Civil ou Polícia Federal
desempenhando quaisquer de suas atribuições.
Esta
posição está baseada na interpretação do art. 4º, caput, do CPP, que não faz distinção ao utilizar o termo:
Art. 4º A polícia
judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas
respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da
sua autoria.
Para uma segunda corrente, a
Polícia Civil e a Polícia Federal podem ser “polícia judiciária” ou “polícia
investigativa”, a depender da função que estejam exercendo. Assim, a expressão
“polícia judiciária” não abrange todas as atribuições da Polícia, mas apenas
parte delas. É preciso, portanto, diferenciar: “polícia judiciária” é a Polícia
Civil ou Polícia Federal quando estiver praticando atos no auxílio do Poder
Judiciário. Por outro lado, quando a Polícia atuar na investigação e coleta de
provas sobre a autoria e materialidade de infrações penais, ela é “polícia
investigativa” (e não “polícia judiciária”).
Esta posição encontra fundamento
no art. 144, § 1º, I, da CF/88, que, diferencia a função de “polícia
judiciária” da atribuição da Polícia de apurar infrações penais. Veja:
Art. 144 (...)
§ 1º A polícia federal,
instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e
estruturado em carreira, destina-se a:
I - apurar infrações
penais (...)
IV - exercer, com
exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.
A primeira posição é majoritária
na doutrina e na jurisprudência (vide, por exemplo, a redação da Súmula
Vinculante n.°
14-STF). No entanto, percebe-se, claramente, que o art. 2º da Lei n.° 12.830/2013 adotou a
segunda corrente, que representa o entendimento prevalente entre os Delegados
de Polícia.
§ 1º Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe
a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro
procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das
circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.
O Código de Processo Penal e a
legislação processual extravagante utilizam, em várias oportunidades, a
expressão “autoridade policial”. Vale ressaltar que até mesmo a CF/88 emprega
esta terminologia em uma oportunidade (art. 136, § 3º, I).
Quem é considerado “autoridade policial”?
Existem duas correntes sobre o
assunto:
1ª) Para uma primeira posição,
autoridade policial é o Delegado de Polícia (Civil ou Federal) e, no caso de
investigações militares, o Oficial militar responsável pelo inquérito.
2ª) Em um segundo entendimento,
autoridade policial não seria necessariamente o Delegado de Polícia, mas sim o
agente público estatal designado para exercer as funções de autoridade policial,
podendo ser um policial civil ou militar, por exemplo. É a tese defendida por
alguns para que os policiais militares possam lavrar termo circunstanciado de
ocorrência no caso de infrações de menor potencial ofensivo (art. 69 da Lei n.° 9.099/95).
Feita a ressalva quanto à
existência desta discussão, deve-se deixar claro que a posição amplamente
majoritária é no sentido de que a autoridade policial é, realmente, apenas o
Delegado de Polícia, sendo importante que assim o seja, pois as atividades por
ele desempenhadas exigem conhecimentos jurídicos e responsabilidade
proporcional a este cargo.
A previsão deste § 1º reforça os
argumentos da 1ª corrente acima exposta, tendo em vista que o termo
circunstanciado de ocorrência é um procedimento previsto em lei que tem como
objetivo apurar uma infração penal.
Este § 1º proíbe que sejam realizadas investigações criminais por
outros órgãos?
Não. Deve-se esclarecer que este
§ 1º não veda que investigações criminais sejam conduzidas por outros órgãos.
Isso porque este dispositivo deverá ser interpretado sistematicamente com o
art. 4º, caput e parágrafo único, do
CPP, que continuam em vigor.
Assim, a correta exegese do § 1º
é a de que o Delegado de Polícia é a autoridade policial, de forma que, no
inquérito policial e nos demais procedimentos de investigação realizados pela
polícia, é ele o responsável pela condução.
Em suma, a Lei confirma aquilo
que a doutrina já ensinava: é possível a investigação realizada por meio de
outros órgãos, no entanto, a presidência do inquérito policial (ou de outros
procedimentos investigatórios da polícia) é incumbência do Delegado de Polícia.
O fato do Delegado de Polícia possuir a prerrogativa da condução do
inquérito policial significa dizer que ele pode se negar a cumprir as
diligências requisitadas pelo Ministério Público?
Não. O inquérito policial possui
como característica o fato de ser um procedimento discricionário, ou seja, o
Delegado de Polícia tem liberdade de atuação para definir qual é a melhor
estratégia para a apuração do delito. Justamente por conta disso, a legislação
previu que a autoridade policial pode indeferir diligências requeridas pelo
indiciado ou pela vítima (art. 14 do CPP). Este indeferimento, por óbvio, está
sujeito ao controle jurisdicional, podendo ser revisto caso irrazoável. Isso
porque discricionariedade não se confunde com arbitrariedade.
A discricionariedade do IP, no
entanto, é mitigada em se tratando de requisições formuladas pelo Ministério
Público. Considerando que o Parquet é o titular da ação penal e que uma das
finalidades do IP é coletar elementos informativos para a formação do convencimento
(opinio delicti) do membro do MP,
nada mais lógico que este tenha a prerrogativa de requisitar (com força de
obrigatoriedade) a realização de diligências que, para ele, irão ser de
fundamental importância na construção do seu convencimento.
Além de lógico e coerente com o
sistema, a prerrogativa de requisição de diligências pelo Ministério Público é
prevista expressamente no CPP e na própria CF/88:
Código de Processo Penal
Art. 13. Incumbirá ainda à
autoridade policial:
II - realizar as
diligências requisitadas pelo juiz ou pelo Ministério Público;
Constituição Federal
Art. 129. São funções
institucionais do Ministério Público:
VIII - requisitar
diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os
fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais;
Vale ressalvar, no entanto, que,
se a requisição do membro do Ministério Público for manifestamente ilegal, a
autoridade policial não é obrigada a atendê-la, devendo, de forma motivada,
recusar o cumprimento.
§ 2º Durante a investigação criminal, cabe ao delegado de polícia a
requisição de perícia, informações, documentos e dados que interessem à
apuração dos fatos.
Para que o Delegado de Polícia
possa realizar a atividade investigatória é indispensável que detenha meios de
coleta das provas. O CPP traz, em seus arts. 6º e 7º, um rol de diligências
investigatórias que podem ser determinadas pela autoridade policial (Delegado
de Polícia).
Como o CPP é antigo e foi
idealizado tendo como alvo crimes violentos, patrimoniais e sexuais, o elenco
dos arts. 6º e 7º encontra-se há muito tempo desatualizado, especialmente
diante das novas formas de criminalidade (crimes de escritório, cibernéticos
etc.). Justamente por isso, a doutrina e a jurisprudência afirmam, de forma
uníssona, que as diligências ali previstas são exemplificativas.
Na verdade, sempre se defendeu
que o Delegado pode, diretamente, requisitar quaisquer provas necessárias à
investigação, ressalvadas aquelas diligências cuja CF/88 exige autorização
judicial (cláusula de reserva de jurisdição), tais como interceptação
telefônica, quebra de sigilo bancário e fiscal, busca apreensão etc.
Desse modo, o dispositivo apenas
reforça o entendimento da doutrina e da jurisprudência, não consistindo
propriamente uma inovação no mundo jurídico.
Este § 2º proíbe que o Ministério Público requisite, ao Delegado de
Polícia, diligências investigatórias?
Não. Os arts. 13 e 16 do CPP
continuam em vigor e não foram afetados por este § 2º. Como já exposto acima, a
prerrogativa do Ministério Público de requisitar diligências investigatórias
encontra fundamento constitucional (art. 129, VIII), de sorte que não poderia
ser abolida por lei infraconstitucional.
§ 3º O delegado de polícia conduzirá a investigação criminal de
acordo com seu livre convencimento técnico-jurídico, com isenção e
imparcialidade. (PARÁGRAFO VETADO)
O § 3º do art. 2º foi vetado pela
Presidente da República.
A chefe do Poder Executivo
apresentou as seguintes razões para o veto:
“Da forma como o dispositivo foi redigido, a referência ao
convencimento técnico-jurídico poderia sugerir um conflito com as atribuições
investigativas de outras instituições, previstas na Constituição Federal e no
Código de Processo Penal. Desta forma, é preciso buscar uma solução redacional
que assegure as prerrogativas funcionais dos delegados de polícias e a
convivência harmoniosa entre as instituições responsáveis pela persecução
penal.”
O
dispositivo vetado era o que mais gerava polêmica no projeto e o que recebia as
maiores críticas por parte dos membros do Ministério Público que, por meio de
suas associações, trabalharam pela sua rejeição.
Na prática forense, observa-se,
com alguma frequência, a divergência de opiniões entre o Delegado que preside o
inquérito policial e o Promotor de Justiça/Procurador da República que atua no
caso sobre a pertinência ou não de determinadas diligências.
O Delegado de Polícia conclui o
inquérito, faz o relatório e envia para apreciação do Ministério Público. Este,
nos termos do art. 16 do CPP, entende que é necessária a realização de novas
diligências e faz a requisição nesse sentido. Sucede que, em algumas
oportunidades, o Delegado reputa que tais diligências são dispensáveis, inócuas
ou mesmo inadequadas, recusando-se a cumprir a requisição e devolvendo o IP. O
Ministério Público, como regra, não concorda com este juízo de valor feito pela
autoridade policial e insiste nas diligências, surgindo, assim, um incômodo e
improdutivo impasse.
Como já explicado linhas atrás,
para a maioria da doutrina e da jurisprudência, não há discricionariedade do
Delegado de Polícia na condução do IP no que tange às requisições formuladas
pelo Ministério Público. Assim, para a posição majoritária, a autoridade
policial não pode se recusar a cumprir a requisição ministerial de novas
diligências, salvo em caso de flagrante ilegalidade.
O § 3º do art. 2º do projeto
aprovado tinha como objetivo mudar este entendimento majoritário, fazendo com
que constasse, de forma expressa em lei, que a condução da investigação
criminal seria feita pelo Delegado de Polícia conforme o seu livre
convencimento técnico-jurídico. Em outras palavras, o objetivo era fazer com
que a decisão final sobre a realização ou não das diligências investigatórias
no inquérito policial ficasse a cargo do Delegado de Polícia.
O outro propósito deste § 3º era
o de reafirmar a tese expressa na PEC 37, qual seja, o de que a investigação
criminal é atribuição da Polícia, sob a condução do Delegado.
O veto presidencial pode ser
feito por duas razões:
•
Quando a norma aprovada contraria o interesse
público (veto político);
•
Quando a norma aprovado é inconstitucional (veto
jurídico).
No
caso concreto, a Presidente vetou o § 3º alegando “contrariedade ao interesse
público” (veto político). Apesar disso, penso que, mesmo se tivesse sido
sancionado, este § 3º somente poderia ser considerado válido se não provocasse
mitigação do poder de requisição do Ministério Público. Em outras palavras, se
o veto for derrubado, este § 3º deverá ser interpretado conforme a Constituição
(art. 129, VIII), no sentido de que o Delegado de Polícia conduzirá a
investigação criminal de acordo com seu livre convencimento técnico-jurídico,
não podendo, contudo, negar cumprimento às requisições do Ministério Público,
considerando que estas possuem previsão em norma constitucional de eficácia
plena, que não pode ser restringida por lei.
Vejam agora que interessante:
mesmo o dispositivo tendo sido vetado, o Delegado de Polícia continua
conduzindo a investigação criminal policial (inquérito policial e termo
circunstanciado) de acordo com seu livre convencimento técnico-jurídico, com
isenção e imparcialidade. Isso porque, como já afirmado, o livre convencimento
técnico-jurídico do Delegado decorre da característica do IP de ser
discricionário. Esta discricionariedade, contudo, não é absoluta, conforme
também explicado, não podendo a autoridade policial recusar cumprimento às
diligências requisitadas pelo Ministério Público. A isenção e imparcialidade,
por seu turno, são consequências dos princípios da impessoalidade e moralidade,
insculpidos no art. 37, caput, da
CF/88.
Atenção, contudo, no caso de provas de concurso público: se a
alternativa da questão afirmar que o Delegado de Polícia possui livre
convencimento técnico-jurídico na condução da investigação criminal, tal
assertiva é INCORRETA, considerando que o examinador estará apenas querendo
saber se o candidato conhece o fato de que o dispositivo que previa isso foi
vetado.
Observação final: apesar de não estar explícito, as razões de veto
divulgadas sinalizam que a Presidência da República concorda com a tese de que
o Ministério Público detém o poder de investigação. De qualquer modo,
juridicamente, a opinião do Poder Executivo quanto ao tema pouco importa,
considerando que a questão será dirimida, de forma definitiva, pelo Plenário do
Supremo Tribunal Federal ou pelo Congresso Nacional, se aprovada a PEC 37.
§ 4º O inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei em
curso somente poderá ser avocado ou redistribuído por superior hierárquico,
mediante despacho fundamentado, por motivo de interesse público ou nas
hipóteses de inobservância dos procedimentos previstos em regulamento da corporação
que prejudique a eficácia da investigação.
Inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei:
Atualmente, as duas únicas formas
típicas de investigação criminal previstas em lei e conduzidas por Delegado de
Polícia são o inquérito policial e o termo circunstanciado.
Avocar: ocorre quando o superior hierárquico retira o Delegado da
condução do IP ou do TC e passa ele próprio a dirigir o procedimento.
Redistribuir: ocorre quando o superior hierárquico retira o
Delegado da condução do IP ou do TC e designa outro Delegado para dirigir o
procedimento.
Superior hierárquico:
É definido pela lei orgânica de
cada Polícia e pelos demais atos normativos internos.
Em linhas gerais, pode-se apontar
o seguinte:
•
Polícia Civil: o superior hierárquico com poderes
para avocar ou redistribuir os procedimentos é o Delegado-Geral.
•
Polícia Federal: esta função de superior
hierárquico é exercida pelo Superintendente-Regional.
Instrumento por meio do qual o procedimento pode ser avocado:
despacho fundamentado exarado pelo superior hierárquico.
Hipóteses nas quais poderá haver a avocação ou a redistribuição:
a) Motivo de interesse público;
b) Se o Delegado descumprir os
procedimentos previstos em regulamento da corporação que prejudique a eficácia
da investigação.
A avocação ou a redistribuição do procedimento investigatório viola a
CF/88?
Não, desde que fundamentada. Isso
porque tanto o IP como o TC são procedimentos administrativos,
submetidos, portanto, às regras aplicáveis aos atos administrativos. Os atos administrativos
podem ser avocados, delegados ou redistribuídos, desde que não haja previsão
legal em sentido contrário. Trata-se de uma decorrência do poder hierárquico e,
como a estrutura da Polícia é hierarquizada, a ela se aplica esta
característica.
Análise crítica da previsão
Rigorosamente, este § 4º seria
dispensável, considerando que todo ato administrativo precisa ser motivado. No
entanto, é salutar a previsão para que haja uma disciplina mais nítida ao tema,
garantindo maior segurança jurídica. Ademais, existe corrente (minoritária) que
sustenta que alguns atos administrativos não precisam ser motivados. Desse
modo, repita-se, foi acertada a previsão.
O que se lamenta é a utilização
de expressões tão vagas na definição das hipóteses nas quais é possível a
avocação e a redistribuição do procedimento. Isso enfraquece o controle que
poderia ser exercido sobre tais atos, a fim de evitar avocações ou
redistribuições casuísticas.
§ 5º A remoção do delegado de polícia dar-se-á somente por ato fundamentado.
É
extremamente salutar a previsão expressa de que a remoção do Delegado precisa
ser um ato fundamentado como forma de minimizar favorecimentos e perseguições
decorrentes do trabalho de tais profissionais.
Critica-se
o fato de a lei não ter elencado hipóteses nas quais seria permitida a remoção
do Delegado de Polícia, o que certamente seria muito mais relevante sob o ponto
de vista da segurança jurídica. Isso porque, muitas vezes, a remoção ex officio de um Delegado que incomode o
Governante ou a direção da Polícia para outra Delegacia pode ser motivada por
argumentos como “necessidade do serviço” sem que a veracidade de tal
fundamentação possa, em muitos casos, ser controlada de forma satisfatória pelo
Poder Judiciário.
A remoção de que trata este § 5º abrange apenas a transferência para
cidades diferentes?
Não. O objetivo da norma é o de
resguardar o Delegado de Polícia de remoções motivadas por razões espúrias.
Esta previsão traz a garantia de que a autoridade policial não será afastada
das atividades que está exercendo sem que haja um motivo justificado. Assim, a
transferência do Delegado de uma Delegacia para outra deverá também ser
fundamentada.
Com esta nova previsão, o Delegado de Polícia passou a gozar da
garantia da inamovibilidade?
Não.
A inamovibilidade é uma garantia constitucional, conferida aos membros da
Magistratura (art. 95, II), do Ministério Público (art. 128, § 5º, I, “b”) e da
Defensoria Pública (art. 134, § 1º), por meio da qual se assegura aos
integrantes dessas carreiras que eles não serão removidos do juízo ou ofício
ondem atuam nem afastados dos processos em que funcionam, salvo se, por vontade
própria, ou por motivo de interesse público.
Quando é assegurada a
inamovibilidade aos membros de determinada carreira, isso significa que a regra
é a impossibilidade de remoção ex officio.
Excepcionalmente, admite-se por motivo de interesse público.
No caso dos Delegados de Polícia,
não há uma regra constitucional impedindo a remoção ex officio. A previsão do § 5º simplesmente afirma que a remoção do
Delegado de Polícia, seja voluntária ou de ofício, deve ser motivada (como,
aliás, todos os atos administrativos).
Lamenta-se o fato dos Delegados
de Polícia ainda não gozarem de inamovibilidade, devendo ser esta realidade
alterada como forma de resguardar o interesse público das investigações.
§ 6º O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato
fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a
autoria, materialidade e suas circunstâncias.
A previsão deste § 6º faz
constar, em lei, algumas características do indiciamento que já eram
consagradas na doutrina:
“O
indiciamento é o ato resultante das investigações policiais por meio do qual
alguém é apontado como provável autor de um fato delituoso. Cuida-se, pois, de
ato privativo da autoridade policial que, para tanto, deverá fundamentar-se em
elementos de informação que ministrem certeza quanto à materialidade e indícios
razoáveis de autoria.” (LIMA, Renato Brasileiro de. Curso de Processo Penal. Niterói: Impetus, 2013, p. 111).
Houve, no entanto, uma evolução
no tratamento do tema ao se exigir, de forma textual, que o ato de indiciamento
seja motivado, o que não era feito em uma grande quantidade de casos. Veja o
que afirma o membro do MP paulista Mário Sérgio Sobrinho:
“A legislação brasileira deveria
evoluir, adotando a regra da explicitação das razões para a classificação do
fato em determinado tipo penal, (...) ao mesmo tempo em que a lei deveria fixar
a obrigatoriedade da motivação do ato de indiciamento. É inegável que o ato de
indiciamento exige juízo de valor, o qual, nos meandros do inquérito policial,
é exercitado pela autoridade policial que preside a investigação. Por isso,
dever-se-ia exigir desta a explicitação de suas razões, ao determinar o
indiciamento, as quais deveriam ser apresentadas no inquérito policial para que
fossem conhecidas pelo indiciado e seu defensor, pelo órgão do Ministério Público
e, quando necessário, pelos juízes e tribunais.” (A identificação criminal. São Paulo: RT, 2003, p. 100).
Vale ressaltar que, mesmo antes
desta previsão legal, alguns Estados possuíam atos normativos infralegais
determinando que o ato de indiciamento, realizado pela autoridade policial,
deveria ser fundamentado. É o caso, por exemplo, da Portaria n.° 18/98 da Delegacia Geral
de Polícia do Estado de São Paulo. No âmbito da Polícia Federal, mesmo antes da
Lei, o ato de indiciamento já era obrigatoriamente motivado, por força da
Instrução Normativa n.°
11/2001.
Cumpre mencionar, por fim, que,
sendo o ato de indiciamento privativo do Delegado de Polícia, é equivocado e
inadmissível que o juiz, o membro do Ministério Público ou a CPI requisitem o
indiciamento de qualquer suspeito. Esse era o entendimento da doutrina antes da
Lei e que agora é reforçado com este § 6º. Confira o que há anos já ensinava
Nucci:
“(...) não cabe ao promotor ou ao
juiz exigir, através de requisição, que alguém seja indiciado pela autoridade
policial, porque seria o mesmo que demandar à força que o presidente do
inquérito conclua ser aquele o autor do delito. Ora, querendo, pode o promotor
denunciar qualquer suspeito envolvido na investigação criminal (...)” (NUCCI,
Guilherme de Souza. Manual de Processo
Penal e execução penal. São Paulo: RT, 2006, p. 139).
Art. 3º O cargo de delegado de polícia é privativo de bacharel em
Direito, devendo-lhe ser dispensado o mesmo tratamento protocolar que recebem
os magistrados, os membros da Defensoria Pública e do Ministério Público e os
advogados.
O Delegado de Polícia deverá
receber o mesmo tratamento protocolar que recebem os Magistrados, membros da
Defensoria Pública, do Ministério Público e os Advogados. Assim, por exemplo, o
pronome de tratamento a ser utilizado quando em correspondências oficiais aos
Delegados passa a ser “Vossa Excelência”.
Alegação de inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa
A presente lei resultou de um
projeto apresentado por um Deputado Federal. Diante disso, a Associação
Nacional dos Procuradores da República (ANPR) defendeu, em nota técnica, que
haveria uma inconstitucionalidade por vício de iniciativa tendo em vista que a
lei dispõe sobre o regime jurídico de servidores públicos e a iniciativa para
esta matéria pertenceria ao chefe do Poder Executivo, nos termos do art. 61, §
1º, II, “c”, da CF/88:
§ 1º - São de iniciativa
privativa do Presidente da República as leis que:
II - disponham sobre:
c) servidores públicos da
União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e
aposentadoria;
Com o devido respeito, penso que
a tese não prospera. A Lei n.°
12.830/2013 não versa sobre o regime jurídico dos Delegados de Polícia, ou
seja, direitos, deveres, responsabilidades, remuneração. A Lei versa sobre a
atuação do Delegado de Polícia na investigação criminal. Mesmo quando a Lei
impõe requisitos e prerrogativas para a carreira de Delegado, como no caso do
art. 3º, o que se observa é que tais aspectos estão relacionados com a atuação
da autoridade policial na investigação, não havendo o propósito de regular a
relação jurídica existente entre os Delegados de Polícia e o Poder Público. A
Lei n.° 12.830/2013 versa,
portanto, sobre matéria atinente ao direito processual penal (art. 22, I, da
CF/88), sendo de iniciativa concorrente.
Bibliografia
LIMA, Renato Brasileiro de. Curso de Processo Penal. Niterói:
Impetus, 2013.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e execução penal.
São Paulo: RT, 2006.
SÉRGIO SOBRINHO, Mário. A identificação criminal. São Paulo: RT,
2003.
Artigo elaborado em 23/06/2013.