O que ocorre?
Recentemente tivemos a novel alteração no Código de
Trânsito Brasileiro fruto da famigerada lei seca. A ideia foi remendar o
fracasso que tivemos ao tentar implementar a tolerância zero ao álcool em 2008.
Transcrevo abaixo um trecho da matéria que foi
publicada no site de notícias G1 e faço alguns comentários na sequência no que
tange à óptica jurídica e prática:
“As
novas regras que endurecem a lei seca e começam a vigorar nesta sexta-feira
(21) devem acabar com a brecha usada por muitos motoristas para fugir de
punição. Segundo especialistas ouvidos pelo G1, recusar o bafômetro não vai
mais impedir o processo criminal, mas há críticas à "subjetividade"
do texto.
...
A
mudança no Código Brasileiro de Trânsito sancionada sem vetos nesta
quinta-feira (20) pela presidente Dilma Rousseff possibilita que vídeos,
relatos, testemunhas e outras provas sejam considerados válidos contra os
motoristas embriagados. Além disso, aumenta a punição administrativa, de R$
957,70 para R$ 1.915,40. Esse valor é dobrado caso o motorista seja reincidente
em um ano.”
Formalmente, como era e como
ficou?
O art. 306, do CTB que traz o crime em questão que
teve alterações substanciais. Vejamos:
Antes
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Depois
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Conduzir veículo automotor, na
via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou
superior a 6 decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância
psicoativa que determine dependência.
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Conduzir veículo automotor com
capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra
substância psicoativa que determine dependência.
|
A intenção agora é eliminar a dependência do exame
de sangue ou etilômetro (bafômetro) que eram as únicas formas de comprovar a
presença de álcool no sangue, nos termos da lei, os 6 decigramas.
A total ineficiência da lei seca de 2008 foi essa
necessidade de fazer provas invasivas ou exigir que o agente faça prova contra
si mesmo. São formas que atentam contra os preceitos constitucionais e logo os
tribunais superiores já se manifestaram sobre o assunto derrubando por terra
qualquer tentativa de tornar a lei eficiente.
Eu já cheguei a comentar na época que a lei seca
seria puro sensacionalismo que teria a única função de causar um impacto de
saída e logo cairia no esquecimento, só não imaginava que o legislador teria
matado por completo a lei naquele ano.
Como funciona?
Muito disso foi resgatado agora, porém temos alguns
problemas ainda. Passando primeiro à funcionalidade da lei, ela será utilizada
da seguinte forma:
A autoridade que fizer a abordagem terá o livre
arbítrio de afirmar que o motorista se encontra sob influência de álcool ou de
outra substância psicoativa que determine dependência. Essa afirmação poderá se
dar por mera verificação preliminar da autoridade, testemunhos, vídeos e
similares nos termos dos parágrafos 2º e 3º do art. 306, do CTB.
Do ponto de vista formal a pessoa não é obrigada a
produzir prova contra si mesmo que deriva da máxima latina do nemo tenetur se detegere estampada no
art. 5º, LXIII, da CF. Só que a simples afirmação de um policial que a pessoa
está embriagada seria suficiente para configurar o crime em tela.
Grosso modo, a pessoa terá de se submeter ao teste
de alcoolemia para comprovar que está sóbria. Do contrário, o policial poderá
concluir pela ocorrência do crime.
De cara encontramos duas afrontas na nova lei:
Primeiro que os tipos penais (crimes) devem
obedecer ao princípio da legalidade com seus desdobramentos, entre eles a
clareza da lei penal que está umbilicalmente ligada ao princípio da
taxatividade que nos alerta que a lei incriminadora deve ser precisa e certa,
sem dar margem a subjetivismos e interpretações dúbias.
Segundo que se está tentando inverter a ordem das
coisas. A presunção de inocência (art. 5º, LVII, da carta magna) sempre foi uma
das vigas mestre do estado democrático de direito. Mas agora, a simples
afirmação do policial já pode considerar que a pessoa é culpada e para provar o
contrário ela deverá produzir prova contra si mesma? Ao Estado cabe provar a
culpabilidade e não ao cidadão! Algo está errado aqui.
Desculpem-me
os defensores da lei seca, mas a meu ver ocorreu, novamente, um problema que
atenta contra as bases do direito penal.
O
que eu tenho a dizer acerca da nova lei seca?
Sempre fui adepto das correntes minimalistas do
direito penal e depois de virar um estudioso e admirador da criminologia
reafirmo ainda mais a minha posição. Não se está a defender um estado anárquico
aqui. Mas apenas que esta é uma preocupação que deve ficar adstrita à esfera
administrativa e não à penal.
O direito penal só deve ser usado em últimos casos.
Essa é uma questão que poderia ser controlada com medidas administrativas mais
drásticas como incidência de multas mais pesadas, fiscalização mais presente
etc. De fato a lei melhorou neste ponto, o que é louvável, mas não de forma
satisfatória ainda.
Mais uma vez, há um grande sensacionalismo
midiático em cima da questão dos acidentes de trânsito, sobretudo em épocas
festivas como no mês de dezembro. Isso faz com que os governantes queiram
atendes aos anseios em busca de leis mais pesadas e acabem cometendo tais equívocos.
Pergunto: Adiantará uma atuação ostensiva até o
carnaval e depois parar a fiscalização por completo? Resolve o problema
prender?
Aspectos penais.
Prender não resolverá. Até porque onde serão
encarcerados os “bandidos” da lei seca? Se não temos vagas em estabelecimentos
prisionais para homicidas, traficantes, estupradores e outros criminosos
perversos. O que faremos com aquela pessoa que ingeriu uma latinha de cerveja
com o almoço e caiu na blitz da lei seca ou qualquer cidadão de bem que cometeu
algum deslize?
Pergunto-me se alguém já entrou em um presídio e
sabe o quão promíscuo é o ambiente. Será que seria possível reabilitar a pessoa
ou mais provável ainda seria contaminar ela no mundo do crime?
Não bastasse isso, já adianto que alguém,
dificilmente, será preso. Por quê?
Simplificadamente falando, o crime tem pena de
detenção de seis meses a três anos. Isso significa que o infrator poderá gozar
do benefício da suspenção condicional do processo. Ou seja, ele sequer será
processado mediante algumas condições.
Em últimos casos, se for processado e condenado,
poderá ter sua pena privativa de liberdade (prisão) substituída por um pena
restritiva de direitos como, por exemplo, a de serviços comunitários, limitação
de fim de semana etc.
Considerações finais.
A meu ver a lei teve uma boa intenção, progrediu
bastante nos aspectos administrativos com medidas mais drásticas, mas poderia
ter ido além.
Na seara criminal se está diante de uma aberração
que contraria o nosso ordenamento jurídico em vários aspectos e ainda permite
uma ampla subjetividade ao fiscal da lei.
Creio que ocorrerão muitos abusos ainda e que o
judiciário será chamado a intervir de alguma forma positiva. Esperemos agora
para ver o quão eficiente ela será na prática.
Minha recomendação é: Se for dirigir, não beba!